Kaspar Hauser: um modelo de não adequação

Kaspar Hauser (provável 30 de Abril de 1812 – 17 de Dezembro de 1833 em Ansbach, Mittelfranken) foi uma criança abandonada, envolta em mistério, encontrada na praça Unschlittplatz em Nuremberg, Alemanha do século XIX, com alegadas ligações com a família real de Baden. Hauser não sabia falar, nem andar e não se comportava como humano. Até hoje o seu enigma persiste: apesar de muitas hipóteses e suspeitas, não se descobriu sua origem. “Cada um por si e Deus contra todos” é o título original que o diretor Werner Herzog tirou de “Macunaíma”, de Mario de Andrade, e fala mais sobre o filme do que o neutro título nacional, “O Enigma de Kaspar Hauser”. O prólogo inicial do filme de Herzog inicia uma espiral ascendente: Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?

O processo de integração ao qual Kaspar Hauser será forçado inclui a representação, faceta que ele desconhece por conta de suas origens. Um modelo de civilização e de desenvolvimento são os parâmetros da época (século 19). Por isso, os que não correspondiam ao  “homem civilizado” eram classificados como primitivos, atrasados e dessa forma, deveriam ser orientados ao desenvolvimento e evolução. É dentro dessa visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado. Vygotsky aponta em seus estudos que o pensamento e a linguagem tem origens independentes, fundindo-se posteriormente no tipo de linguagem interna que constitui a maior parte do pensamento maduro. Portanto, os signos lingüísticos apresentados à Kaspar Hauser não fazem nenhum sentido e são insuficientes para explicar o indecifrável.

O mesmo conceito que serviu como argumento para as invasões bárbaras ocorridas nas Américas, o de que existe seres inferiores, com déficit, está ali para justificar a modelagem do comportamento de Hauser. Numa sociedade que não compreende as diferenças a sua aproximação cognitiva da realidade é direta, ou seja, percebe o mundo de uma maneira ainda não programada pela estereotipia cultural, como propõe Saboya em sua abordagem psicossocial do caso. O racionalismo positivista que alicerça uma organização social somado a socialização ou humanização de um indivíduo não tem nada de biológico, antes é uma espécie de higienização, uma passagem da natureza para a cultura. Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser visto como “domesticado” pela sociedade da época.

Por fim, além de todos os instrumentos de repressão e domesticação, a religião destaca-se pela estigmatização que faz do sujeito que não se dobra diante de seus elementos abstratos. Em determinada cena, um reverendo tenta convencer Kaspar Hauser sobre a existência de Deus, usando para isso a máxima: “Você deve admitir o mistério da fé sem procurar entender” ao que Kaspar responde: “Preciso aprender a ler e escrever melhor para compreender o resto”. Talvez seja justamente isso que falte a este cenário sub-pós-moderno: seres capazes de transcender sem orientação mística, política ou acadêmica. A ilusão de que vivemos em harmonia é facilmente desfeita se, por acaso, discorda-se de determinada religião, sistema econômico ou político, ou ainda, institucional.

Até que ponto as práticas culturais definem o desenvolvimento psicológico do sujeito? A práxis social, necessária para gestar o referencial cultural de apreensão da realidade, não seria na verdade instrumento ideológico? E sendo, qual organização capaz de solidificar uma resistência?

Jeder für sich und Gott gegen alle, Werner Herzog, 1974

7 Comentários (+adicionar seu?)

  1. Davi
    fev 15, 2011 @ 10:20:01

    Clap, clap, clap! Ótimo! Seu convite à reflexão deixa-me intrigado, inquieto. O assistirei!

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  2. Davi
    fev 15, 2011 @ 10:29:50

    Wow! Ótimas palavras! Concordo plenamente. =)

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  3. Davi
    fev 15, 2011 @ 10:36:36

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  5. Alex Borges
    set 14, 2013 @ 17:38:53

    Interessante a abordagem dada pelo texto sobre esta obra do Herzog. Acrescentaria apenas uma observação sobre a inadequação. Assim como nas várias cenas sociais, educacionais e a da religião citada no texto, há uma da qual gosto bastante: quando um professor tenta descobrir o alcance do raciocínio de Hauser com a apresentação do problema de lógica e, pensando fora da caixa, Hauser apresenta uma solução a que o professor não aceita pois, segundo ele, não faz parte da lógica, embora resolvesse o problema. Ou seja, até mesmo na ciência as representações do certo e errado faziam do pobre Kaspar um inadequado total. Belo texto o seu; belo filme o do Herzog.

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